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quarta-feira, 12 de julho de 2006

Ticket

Olhei para suas mãos limpas, claras, ossudas. Ele argumentava com a coitada do outro lado do balção; tentava tirar vantagem utilizando seu charme prepotente de 'pessoa mais ou menos conhecida'.

Todos nós estávamos na mesma situação de espera, de paciência. Mas ele não: ele e suas mãos limpas, claras, ossudas, tinham que ter prioridade. Pareceu emprestar autoridade à sua personalidade irritante mas a moça deve ter dito algo como 'não posso, senhor, sinto muito', enquanto apertou um sorriso falso que indica claramente que 'sinto muito' deve ser interpretado como 'o problema é seu, idiota', embora a moça não possa dizer isso porque A Companhia não permitiria. Ele agradeceu com alguma careta desagradável e lhe devolveu um aceno com a cabeça.

Apertou o seu ticket no bolso e caminhou uns passos passeando os olhos entre o chão e as janelas amplas e vazias. A sua genialidade deveria ser alguma característica tão ínfima, tão pouco acima da média, que era quase igual a todo o mundo. Talvez por isso a sua insistência, a sua irritação algo confusa e alarmante, como se ficar a um passo da nossa pobre existência o fizesse recordar um passado não tão remoto.

É possível que nos gramados, ou no palco, essa aparente ínfima diferença seja responsável por um resultado espetacular, rimbombante, glorioso, trinufal, épico, ele e suas malditas mãos ossudas. Mas aqui não. Aqui engoliria o ticket e teria que fazer a mesma cara vazia que a nossa.

A minha mediocridade sorriu.