Translate

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Moisés é o cara da vez


Nosso último homem-morcego se enfrentou agora com o desafio de encarnar um herói mitológico ocidental master blaster: Moisés.

Não, ainda não vi o filme, e mesmo se tivesse visto, detesto spoiler. E se me disser que vai ver o filme para tentar saber como foi a estória de Moisés, leia a Biblia antes porque Hollywood é fiel somente ao que dá audiência.

Claro que religiosos podem ficar revoltados, mas o maior argumento contra a veracidade da existência de Moisés é que evoca mitos demais, é tão difícil de ocorrer  tanta coisa com uma só pessoa que com certeza a cada passo de Moisés o Gerador de Improbabilidade Infinita conquistaria o universo !

'Ei Moisés, conversa com a sarça agora que ela vai responder !'

Temos por exemplo:

- o faraó estava afim de um controle de natalidade básico e estava matando os filhos homens dos escravos hebreus, então uma mulher tem a idéia de abandonar o seu filho para tentar salvá-lo;
- o bebê abandonado é resgatado das águas.
Isso já nos lembra de outros dois heróis que sofrem tentativas de assasinato e são salvos ainda bebês: Jesus e Zeus. Antes de ficar zangado por ter falado 'herói', lembremos que a concepção antiga do termo era 'filho de um deus e um humano', e em termos coloquiais os tres são heróis para os seus povos.
E antes de falar que estou misturando as coisas, vamos misturar mais ainda e lembrar de outro herói, Krishna, que também se livrou da profecia onde tentaram matá-lo assasinando todos os meninos, e essa é uma das várias semelhanças entre Jesus e Krishna. Os dois são encarnações do deus, os dois são concebidos sem união sexual, e assim vai...
 
- como foi resgatado por uma das mulheres do faraó, se torna preferido da princesa e vive no palácio real egípcio. Nada mal para um filho de escravos resgatado do Nilo!
- é expulso quando se revolta vendo o tratamento imposto aos escravos, mas não é morto
- tem um senso social com a turma de seu verdadeiro origem (escondido no fato de ter sido deixado pela sua verdadeira mãe)
- ouve a voz do verdadeiro deus de uma sarça em fogo que não consome (hoje a gente chama isso de lampadinha), onde você pode escolher a explicação que achar mais apropriada:
  •   politeísta: os outros deuses existiam, mas não eram páreo para o deus mega blaster hebreu -aliás, esta seria a explicação oficial da estória
  •   monoteísta: (eu diria maniqueísta, a obsessão da luta entre o bem e o mal): os outros deuses não existiam, eram facetas do deus do mal, ou capeta, ou seja lá o for que o inimigo do deus verdadeiro. Esta seria a interpretação que imagino mais razoável atualmente de quem se considera monoteísta ou evangélico ferrenho, mas contradiz a Biblia, que cita muitos outros deuses
  •   cético: nenhum do deuses existiam mas a narrativa dos dois lados precisava de deuses para colocar a responsabilidade nos atos humanos. Esta seria a explicação que alguém não judeu ou não cristão pode dar aos acontecimentos narrados (sempre pelo Torá, ou Êxodo no Velho Testamento, que em definitiva são textos baseados nas mesmas narrativas)

Existem outras mais ousadas, como extraterrestres interferindo nos nossos mundanos assuntos, mas acho eles muito mundanos para que uma raça alienígena navegue zilhões de kilómetros por zilhões de anos para colocar uma luz de neon atrás de um arbusto, falar com um cara de túnica e cajado no meio do deserto e deixar com ele umas leis mais do que básicas, só porque eles são os escolhidos e os outros não!



Mas isso não é tudo, nós temos ainda totalmente de grátis mais impossibilidades para você, veja :

- o seu deus o coloca para comandar uma rebelião de escravos, porque ficou sentido com as preces de seu antigo povo, que agora quer chamar de seu (quando na verdade seria o criador do universo, por que esse privilégio?)
- onde Moisés lança uma advertência: ou deixa os escravos saírem ou virão as pragas
- como o faraó é um cara teimoso, aconselhado por um grupo de feiticeiros mais teimosos ainda, acontece uma praga atrás da outra, ora comandada por Arão, ora por Moisés, até contar dez, DEZ pragas ! É morte de peixe pela água que vira sangue, depois rãs, piolhos, infecções, tormentas, até granizo e morte de crianças!

Bom, acabaram as impossibilidades ? Não! Ah, mas isso é só o começo ! Nós temos ainda :

- a fuga conta da ajuda do deus para abrir e fechar as águas que marcam o limite do território: levantar uma parede de água não é tarefa de qualquer um! Hoje em dia ter água depois das 22h já está difícil, imagina levantar uma parede dela !

 
O Alckmin iria multar Moisés, olhar para a cara dele e dizer: "se economizar, não vai faltar!" !



- depois de fugir, é preciso encontrar a terra prometida. Tarefa fácil? Não, pois quem vai chegar nela terá que chegar puro e alabar o deus verdadeiro.
- depois de tudo isso, o povo faz adora o deus verdadeiro ? Como sempre quem manda no cérebro humano é o estômago, e na primeira dificuldade uma turma se junta para um holocausto básico para o becerro de ouro.

Veja bem: na antiguidade, holocausto era o sacrifício pela cremação de um animal a um deus. Há referências no Velho Testamento descrevendo holocaustos. Depois a palavra passou a se associar a uma grande catástrofe, associado hoje ao holocausto judeu pelo regime nazi.

Existe uma tentativa de explicação científica sobre as pragas através de uma erupção volcânica próxima, mas não vem ao caso: o que me interessa em Moisés é que é um hiato na literatura ocidental. É um herói dentro de um contexto religioso, sim, mas contém todos os bons atributos do herói, como vemos no final desta entrega de pontos marcantes de um herói:

- ele se sacrifica pelo seu povo, sobe no monte quando chamado pelo seu deus, e volta com as leis escritas para que ninguém diga que não sabe como se comportar. Esta é praticamente a fundação de uma civilização, para ver a magnitude heróica de Moisés.
- e mesmo assim, como todo herói, tem um fim trágico: morre no deserto sem chegar à terra prometida.

Além do argumento da impossibilidade de ocorrer tanta coisa inverossímil com o mesmo sujeito, está o fato dos egípcios sequer mencionarem Moisés. E olha que há hoje uma informação enorme sobre cada era de faraós egípcios, e até evidências daquilo que outras gerações reprovaram, como o curto governo de Akhenaton, que queria adorar como único deus a Aton, contrariando milênios de politeísmo, e que teve seu nome e do seu deus raspado das pedras e monumentos após da morte dele e de sua famosa esposa Nefertiti.

É provável que Moisés tenha existido, tenha saído de Egito com algumas tribus e fundado o que seria depois Israel, e tenha se tornado tão legendário que outras estórias foram colando no seu personagem através dos anos. Não havia então trovadores que cantassem as façanhas, havia sacerdotes que escreviam certos trechos de tradição, com muita dificuldade. 

Para entender isso imagine que é difícil hoje manter a sua casa limpa, mesmo limpando toda semana, já pensou em cuidar de um perganimo, ou seja folha de bananeira seca, ou um texto escrito na pele de um camelo, por digamos, tres gerações, uns 100 anos, no deserto ? Imagine então mantê-lo no deserto por uns trezentos anos para depois ter a oportunidade de ter uma cidade, com sacerdotes e escribas para tentar reproduzi-l, depois de provar a sua casta e sua origem e os sacerdotes olharem para o escrito! 

Vamos perguntar para a traça se ela roeu 'faraó' ou 'pão de ló'
Depois da dificuldade da persistência dos pergaminos, há o problema onde o sacerdote precisa amalgamar (juntar, vai) as estórias para que haja uma coerência, pois cada tribu manteve o seu escrito por anos a fio, reproduzindo ou comentando o texto original, que passa a parecer a estória de um telefone sem fio de geração em geração, tendo mudanças no texto derivadas das adaptações da língua e da escrita, sem falar nas adições do autor. Chega então o sacedrote que precisa juntar de digamos 5 versões e gerar uma só: novamente temos uma adaptação do texto.

Então a tradição oral e algo da escrita foi formando o herói que conhecemos hoje, todo grudado de várias lendas ao longo dos séculos, talvez antes atribuídas a vários personagens.

No caso dos heróis no politeísmo, cada um deles deriva de um pequeno local, que reverencia um deus ou deusa (Heracles, por exemplo, 'glória de Hera'), e mesmo tendo várias façanhas, haverá outros heróis fundadores de outras colônias humanas que reverenciam outros deuses. 

Mas Moisés não, passou a ser o herói de um povo cheio de estórias, reduzidas a façanhas de um deus só.

Tudo o que aconteceu a um povo em 700 anos ficou concentrado em um só herói , o mesmo que Hollywood vai novamente explorar como faz de vinte em vinte anos. 




E se Moisés existisse hoje em Sampa ?

Resgatado do Tietê já seria um mega milagre, mais provável seria ser filho de nordestinos (os escravos dos nossos faraós de hoje), abandonado embaixo do banco de um ônibus de periferia, que é o nosso rio Nilo, chegaria até a porta de uma dondoca tipo Marta Suplaca que cuidaria dele como o seu filho. Frequentaria o Diocleciano ou o Dante junto aos irmãos pó-de-arroz até o dia em que iria ver o tratamento injusto a uma empregada e se solidarizaria com o seu povo.

Não precisa sarça ardente, pode ficar embasbacado olhando as luzes numa rave e ouvir a voz do DJ atrás dela, que seria a voz do DJ verdadeiro, ou talvez a voz de Marx (não o Groucho de bigode, eu digo o de barba).

Ameaçaria levar de uma vez os trabalhadores todos que levantaram a cidade para a terra prometida (ou Porto de Galinhas tudo pago) mas sendo ameaçados de abandono de emprego, lançaria uma advertência: ou deixam o pessoal ir tudo pago ou virão as pragas :

- primeiro viriam os golpes no dedo mindinho em cada quina e cada cômoda (by @pirula) a chamada maldição bíblica do dedo maldito!
- se o prefeito continuasse teimando, viriam então os mosquitos! Bom, Pinheiros já está cheio deles, então novamente o prepfeito diria que isso não é obra de um deus;
- então viria a terceira praga: iria cair a internet, mas só em Higienópolis, Moema e Paulista, que é para mostrar que é pessoal.

Depois de suicídios em massa e caos em Guarulhos, o prefeito iria começar a ceder: 'tá bom, mas melhor tudo mundo para Recife, e cada um procura a sua turma'.

'Negativo' diria nosso Moisés moderno, 'já disse que é Porto de Galinhas e tudo pago, ou pensa que só tu pode, hein? '

E para deixar claro que no fundo o deus verdadeiro é um deus malévolo, misteriosamente todos os times da cidade levariam 7 a 1 em cada partida até serem rebaixados.


Série 'B' nãããããããão !
Se o prefeito já com a cidade em caos continuasse teimando, outra praga avassaladora perto das férias iria fazer o povo da cidade tremer: misteriosamente todos os passaportes estariam revogados e aquela viagem para Miami não iria rolar de jeito nenhum!

Aí a catástrofe seria completa e finalmente a cidade cederia com gosto, depois dessa não precisa nem de dez pragas...

Nenhum comentário:

Postar um comentário